domingo, 3 de setembro de 2017

EPIFANIA DAS CANELAS

Há muitos anos não viajava de bicicleta, não me lembro da última vez que arrumamos as coisas: cola, remendo, espátulas, chave de boca número 15 e 14, alicate, um ovo cozido, um doce, um sanduba. Quando será que foi minha última pedalada na estrada rumo ao cálice sagrado? Cálice sagrado era tão somente a pedalada, o chegar ao destino era o menos importante, não me lembro.

Estou fazendo uma força danada para me lembrar da última pedalada, mas nada vêm a minha mente. Talvez tenha sido a descida da serra do mar pela Br 277, Curitiba – Morretes, se foi essa, Meu DEUS, lá se vão quase 30 anos. É, se não foi essa a última, o espaço temporal deve estar certo, entre 25 e 30 anos sem me lançar na estrada com meus companheiros.

25 – 30 anos, acho que esse foi o tempo que brinquei de ser adulto, indo para o trabalho, voltando para casa, pagando contas, dormindo, levantando, indo para o trabalho....

Não havia abandonado a bicicleta, pedalei no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Curitiba, onde quer que tenha morado, sempre pedalei. Nunca fiquei sem bicicleta, mesclava a moto, o carro, o ônibus, metrô, trem e a bicicleta, sempre usei os meios de transporte que estivessem disponíveis.

Faz uns 15 anos que tenho usado preferencialmente a bicicleta nos meus deslocamentos diários pelas cidades, a rapidez, o custo e a liberdade são, para mim, os fatores motores dessa escolha.

Ontem levantei-me as 4hs:24min, tomei café, comi umas frutas, as 5:00 horas já estava no trevo esperando meus amigos, o céu começando a mostras os primeiros raios de sol, a silueta de alguns carros e motos e de alguns ciclistas podiam ser visto,  estava tranqüilo, o whatsapp já havia me informado que meus colegas já haviam recebido minha mensagem e, com certeza, já estavam na estrada vindo em minha direção, fiquei esperando.

Logo vi o contorno de dois ciclistas acenando do outro lado da rodovia, não dava para ver os rostos, somente os contornos, mas não precisava dizer mais nada, haviam chegado e era hora de começar uma pedalada entre duas cidades ligadas por uma rodovia.

Saudamo-nos e embarcamos numa jornada com um misto de apreensão e expectativas que só os jovens sentem. Meu colega não havia nunca pedalado tal distância, era a primeira vez em sua vida que iria se aventurar numa viagem de bicicleta, quanto a mim, quase 30 anos me separavam dessas aventuras.

A pedalada começou tímida num ritmo, confesso eu, decepcionante, estávamos muito, muito lentos para quem iria viajar em uma rodovia e que logo, logo iria temer o sol inclemente daquela região. Logo o sol já foi surgindo 5hs:15min o dia já raiava, podíamos ver nossos rostos, nossos sorrisos, no misto de ansiedade e expectativa comecei a apertar o ritmo, devagar, quase que sem que se fizesse notar comecei pedalar um pouco mais forte, comecei a comentar sobre o vácuo, da sua importância, de como os carros de F1 fazem ultrapassagens, de como os ciclistas formam pelotões e economizam energia para o sprint final etc. Era uma introdução de como nos deveríamos nos comportar para termos mais eficiência na viagem.

Meu amigo havia convidado seu primo para nos acompanhar em nossa jornada. O garoto de uns 18 anos chegou vestindo uma lycra, camiseta jersey, capacete e óculos de ciclismo, bicicleta com pneus slick  etc. estava na cara que o moleque iria colocar o velinho para pedalar.

Ainda pedalávamos lado a lado quando sugeri ao garoto puxar o pelotão para que seu prrimo sentisse pela primeira vez o fator “vácuo”. Na primeira descidinha o moleque começou a esquentar suas canelas e assim começou a brincadeira, roda colada com roda, vácuo fazendo sua função, bicicletas voando baixo no asfalto que só nos esperava. A brincadeira foi se desenrolando, ora era vácuo, ora era pedalada lado a lado, nada rigoroso, nada combinado.

As 7hs:00min entrávamos em nosso destino, a pedalada havia sido tão rápida que mal nos demos conta que já havíamos chegado, comentávamos sobre o cansaço: ei, alguém viu o cansaço por ai? Estávamos inteiros, descemos até a praia, pedalamos na areia dura, fomos até um ponto emblemático da cidade e pegamos nosso troféu.



Hora de hidratar, como sempre havia esquecido a caramanhola que havia colocado no congelador, os amigos sempre prevenidos me deram água, paçoca, completei com uma maçã deliciosa, fechamos o ciclo, agora era curtir a praia.

Minha esposa foi me pegar, desmontei a bicicleta, coloquei-a no carro e voltamos. Como havia me hidratado não somente com água, mas com umas cervejas, estava fora de combate e fiquei feliz em vir de passageiro olhando as paisagens ao longo do caminho. Olhando aquelas paisagens tive minha epifania. Percebi que naquela manhã não vira a paisagem enquanto pedalava, não vira nada; nem a paisagem, nem o tempo, estava somente pedalando, curtindo o caminho. Nada me preocupava, éramos eu, a bicicleta, o caminho e meus companheiros.