domingo, 17 de agosto de 2014

Este texto foi publicado originalmente na  www.escoladebicicleta.com.br

Políticas Públicas de Gerência da Mobilidade

"O transporte é um problema diferente de todos os outros enfrentados por países em desenvolvimento. Se o país fica rico, sua educação melhora, a cultura melhora, quase tudo vai melhorar, exceto o transporte, que vai piorar, porque teremos cada vez mais carros, mais engarrafamentos, mais poluição e uma cidade mais impossível de se viver. Não é possível resolver o problema dos transportes pelo aumento da infra-estrutura viária". 

(Henrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá e responsável pela implantação das ciclovias e do sistema de corredores exclusivos de ônibus conhecido como Transmilenio)

Por cerca de 5 mil anos viemos construindo nossas cidades e somente no último século é que passamos a construí-las adaptadas aos carros. Parece que nos esquecemos de projetar e prover cidades para pessoas. Temos sido altamente capazes de implementar infra-estruturas maravilhosas (túneis, vias expressas, pontes estaiadas etc.) para que os carros desenvolvam grandes velocidades, livres de obstáculos, aptos a percorrer dois pontos no menor tempo possível. Ao mesmo tempo em que construirmos essas infra-estruturas, fomos incapazes de prover a infra-estrutura mínima para resguardar a vida dos cidadãos que não desejam ou não podem fazer uso de veículos automotores. Temos esquecido de prover o básico do básico, temos esquecido de prover calçadas; calçadas com condições mínimas de permitir boas caminhadas, que possam abrigar com segurança crianças, jovens, homens, mulheres, idosos. Privilegiamos em demasia as vias para os carros em detrimento da boa qualidade de vida dos pedestres.

Ambiente da cidade

A construção constante de cidades requer, tanto do poder público quanto da iniciativa privada, um poder imaginativo crescente. Porém, cabe ao poder público, por meio de suas várias políticas, dirigir e orientar suas atuações públicas.
As políticas de transportes, sejam elas relacionadas ao transporte público de passageiros ou ao transporte privado e ao transporte não-motorizado, influenciam e são influenciadas direta e/ou indiretamente por políticas públicas de natureza diversas. A combinação das diversas políticas públicas, ainda que não se relacionem diretamente ao setor transportes, pode afetar sobremaneira o desempenho e a configuração dos setores de transporte público, privado e não-motorizado.

Dentro do ambiente das cidades, o conjunto de políticas urbanas contribui para a definição da forma urbana. A integração das diversas políticas, tais como: uso e ocupação do solo, políticas habitacionais, políticas de transporte, prioridade de sistema viário, regulamentação etc., afeta de maneira direta a competitividade dos diversos modos de transporte, bem como a escolha desses modos e, conseqüentemente, a forma urbana. Curitiba é um exemplo clássico do ordenamento urbano pelo poder público ao longo de um eixo de transportes (foto: Uso do solo e transporte, Curitiba). Decisões de construir cidades adaptadas para o carro refletem em custos imediatos e futuros que, obrigatoriamente, terão de ser repartidos por toda a sociedade, no presente e no futuro, sejam elas em termos tanto energéticos ou ambientais como também nos custos associados à felicidade e ao bem-estar dos habitantes.

São os governos, por meio de implantação de políticas públicas, o principal ator a guiar o desenvolvimento dos mercados de transporte. Se assim não o fossem, como explicaríamos a diferença entre os padrões de mobilidade entre cidades norte-americanas e as européias? Como explicaríamos o renascimento das bicicletas nas cidades holandesas, dinamarquesas, alemãs após a intervenção estatal por meio da provisão de infra-estrutura cicloviária?

A divisão entre os mercados de transporte de massa e o transporte individual, motorizado ou não, não é produto do livre mercado. Ao contrário, ela reflete os maciços investimentos dos governos em favor de um dos modos de transporte, sendo que, os investimentos em transporte de massa podem ter um profundo e positivo efeito no desenvolvimento e crescimento econômico. As políticas públicas necessitam ser guiadas e geridas pelo poder público, mas isso não implica dizer que essas políticas devem ser implementadas a força pelos governos. Implica dizer que devemos municiar nossas sociedades de informações suficientes para que elas possam decidir em qual tipo de cidade desejam criar seus filhos, qual tipo de cidade desejam para usufruir e viver.

Estima-se que do total de deslocamentos motorizados nas cidades brasileiras 80% seja realizado por meio do uso de transportes públicos e somente 20% por transporte particular. A divisão modal nas cidades brasileiras, isto é, os diferentes modos de transportes utilizados pelos cidadãos para se deslocar nas cidades, diferentemente da divisão modal americana e européia, faz uso intensivo tanto do transporte não-motorizado como do transporte público de passageiros para satisfazer suas necessidades de deslocamentos.

Dispomos de pouquíssima informação de como os brasileiros se deslocam nas 5.500 cidades brasileiras. Apenas um número ínfimo de cidades tem uma pequena noção de como seus habitantes se deslocam. Cidades como São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Belo Horizonte dispõem de pesquisas domiciliares específicas, caríssimas, diga-se de passagem, chamadas de "Pesquisa Origem-Destino". Por meio dessas pesquisas pode-se fazer uma radiografia instantânea de como os habitantes de uma cidade se deslocam. Algumas cidades por não disporem de recursos para realizar pesquisas de origem-destino, estimam, de modo quase sempre grosseiro o número de viagens. Nestas cidades as estimativas são feitas contabilizando os dados referentes ao número de viagens realizadas no transporte coletivo e mais um percentual de viagens realizadas pelo total de veículos particulares registrados na cidade (Curitiba, nunca realizou uma pesquisa origem-destino). Portanto, a divisão modal que encontramos nos anais de congressos sobre transporte público e nas publicações especializadas, geralmente constitui uma estimativa grosseira da realidade de como os cidadãos se deslocam.

Assim, os dados sobre mobilidade urbana que são utilizados nas cidades brasileiras pelas prefeituras ou cientistas, técnicos, e bancos que financiam projetos de transporte, ainda que reconhecidos como "verdadeiros" não passam de uma mera especulação de como nos deslocamos. Além de as cidades brasileiras não coletarem de maneira sistemática dados sobre transportes urbanos, a grande maioria de nossas cidades não dispõe de técnicos de transporte, sequer possuem órgãos especializados de gerência de trânsito e transporte, e esta é uma triste realidade.

A carência de informações aliada ao descaso no trato público referente à questão da mobilidade, talvez seja a razão pelo qual não damos importância ao principal meio de transporte dos cidadãos, isto é, não damos atenção - a mínima atenção - à caminhada, isto mesmo, que é o principal modo de deslocamento no Brasil, o modo a pé, a velha e conhecida caminhada. Apesar de ser tão antiga como o ser humano, a caminhada quase nunca é lembrada e, invariavelmente, é esquecida. Uma análise superficial daqueles dados de pesquisa origem-destino mostra que o deslocamento a pé é o principal modo de transporte nas grandes cidades. Para se ter uma idéia da importância da caminhada, mais de um terço do total de percursos realizados em São Paulo são feitos exclusivamente a pé. As pesquisas origem-destino nos mostram apenas trajetos que foram realizadas exclusivamente pelo modo a pé, não nos mostram nem computam as viagens a pé para o transporte público, a caminhada até o estacionamento para uso dos carros privados etc.

Ora, se o maior número de deslocamentos nas cidades brasileiras se dá por meio da caminhada, seguida do transporte público e finalmente pelo transporte privado, não seria de se esperar que os investimentos fossem proporcionais ao número de viagens de cada um desses processos? Infelizmente os investimentos relativos à mobilidade urbana não priorizam os principais modos de transporte. Ao contrário, investimentos maciços têm sido feitos no treinamento de técnicos e na construção de infra-estruturas viárias voltadas exclusivamente ao uso de veículos privados. Pouco ou nenhuma importância tem sido dada ao treinamento e construção relativos aos modos não-motorizados de transporte nas cidades brasileiras.

A não atenção aos modos não-motorizados afeta não somente o cidadão que caminha. Afeta sobremaneira aqueles que necessitam se deslocar utilizando a propulsão humana por meio de bicicleta, patins, skate, cadeira de rodas, etc. Pior que a busca desenfreada por espaços urbanos para construção de ruas, avenidas e estacionamentos para os carros particulares, que tolhem os espaços necessários à inclusão do TNM, é a falta de conhecimento de como se poderia edificar uma cidade mais protetora e humana.

Especificamente no caso das bicicletas, com raríssimas exceções, encontramos esta modalidade de transporte no rol de políticas públicas relacionadas aos modos de transporte, possíveis de serem utilizados pelos habitantes das cidades brasileiras. O desconhecimento do modo bicicleta combinado com a falta de informação de como as pessoas se deslocam nas cidades, tem custado caro a toda à sociedade, principalmente para quem deseja ou necessita se deslocar fazendo uso da propulsão humana, caminhando ou pedalando.

Tanto a proteção ao pedestre quanto ao ciclista, bem como a inclusão deste último no sistema viário com segurança requer da sociedade uma nova abordagem, um novo olhar. Temos um caminho longo a percorrer, seja no campo educacional, seja no campo de operação e construção das infra-estruturas viárias, isto é, calçadas, ruas, avenidas, pontes, túneis etc. Muitas cidades estão sendo construídas, outras consolidadas, outras em constante transformação; o desafio da sociedade agora, mais do que nunca, é incluir com segurança o ser humano dentro de seus sistemas de transportes.

"Nenhuma cidade pode solucionar a mobilidade completamente se não considerar o veículo auto-propulsor por excelência: o homem" 
Lewis Mumford

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Como cuidamos de nossos colegas


No poste anterior havia falado da imagem em homenagem ao dias dos Pais. Obviamente, aqueles que amam seus pais e que tiveram a benção de terem nascido em um berço que lhes nutriu amor, conhecimento, compaixão etc., e que souberam aproveitar o exemplo materno e paterno são definitivamente abençoados, pois tiverem desde a tenra infância o exemplo em casa, já aqueles que não tiveram esta benção tem um caminho longo a percorrer na construção destes valores.

O querer bem ao outro, a preocupação com o próximo é o tema central das religiões, ou seja, está no âmbito da verdadeira filosofia aplicada. Esta filosofia aplicada supre e aperfeiçoa os ensinamentos maternos e conduz ao entendimento mútuo. Os que evoluem na filosofia aplicada percebem e sentem o próximo como extensão de si mesmos e procuram transformar as sociedades para melhor.

A preocupação com o próximo evolui com as sociedades mais adiantadas e estas, por sua vez, evoluem também seus sistemas de transportes. A evolução busca a diminuição das iniqüidades, nos sistemas de transportes ocorre pela provisão da infraestruturas que permitam que todos sejam tratados de maneiras diferenciada mas que atinjam os mesmos objetivos.

Os passeios são uma medida da evolução, caminhar pela Champs Élyséss, na Broadway, nas Ramblas e Ruas Augustas etc. mostra o quão os países se importam com seus concidadãos. Respeitar os limites de todos os cidadãos e tratá-los como seres iguais provendo infraestruturas diferenciadas que acomode-os com conforto e segurança é, definitivamente, uma das medidas de quão evoluída está a sociedade naquele momento.

Enquanto não dermos um tratamento igualitário à todas as pessoas no sistemas de transportes, não poderemos almejar sermos chamados de evoluídos. A segregação e o privilégio de determinados meios de transportes sobre outros é uma forma de discriminação, ainda mais quando colocamos outras pessoas sobre risco de morte ou negamos-lhes o direito à locomoção em condições de igualdade com outros cidadãos. Nestes sistemas não há compaixão, não há a preocupação com o próximo, não há nada quase nada de bom nesses sistemas.

Por que devemos expor nossos concidadãos aos riscos ou fazer com que os mesmos circulem em sistemas inferiores a aqueles que possuem ou fazem uso de outro meio de transporte que demanda maior capital? Por que investimos e deixamos os governos investirem mais em um sistema de transporte que em outro, ainda mais quando se produz mais inequidades?

Para muitos, a resposta simplista, é que é assim mesmo, sempre foi, sempre será. Pena que eles ainda não foram educados e/ou não tiveram a oportunidade de conhecer outras sociedades. Para outros, não há problema em expor os outros aos riscos de morte, a mais baixa filosofia ocupa-lhes a mente e o egoísmo embota-os de maneira perversa.

A mudança é difícil, lenta e cansativa, mas há que ser feita. É imperativo para as sociedades que evoluem que a caminhada seja o meio de maior privilégio em um sistema de transporte.

Resumindo a inequidade em sistemas de transportes.



Principal entrada de uma universidade brasileria

domingo, 10 de agosto de 2014

O poder da imagem


Hoje, dias dos pais, meu amigo, ao abrir o e-mail institucional de uma universidade, se deparou com uma figura que não tem nada a ver com a instituição. Segundo meu amigo, ele não faz a mínima idéia do por que foram escolher essa figura e eu não faço idéia do porque ele me enviou.


 A Universidade dele, bem como as demais instituições de ensino públicas, aquelas que deveriam estar na vanguarda do pensamento e do exemplo, mostram-se ser as mais reacionárias e retrógradas quanto a questão da mobilidade.

Raríssimas exceções encontraremos nas universidades brasileiras um ambiente preparado para receber e acolher os estudantes e funcionários. Estamos na pré-história da mobilidade, do desenho universal, do privilégio do humano sobre a máquina. Via de regra, nessas instituições, dão a preferência ao carro, fazem grandes avenidas, deixam a velocidade livre (colocam umas plaquinhas mequetrefes de 30km/h), devotam amplos espaços aos estacionamentos, depois fazem umas calçadinhas chinfrins e nada, nada de infraestrutura cicloviária. Como esperar que nossa sociedade seja diferente?

Mas, no dia dos pais, colocam uma fotinha bonitinha e, é isso..... 

Esse amigo me contou que quando estavam fazendo o plano de circulação da tal universidade, foi indicado para participar do plano de mobilidade por ser conhecido pelo trabalho na área em questão. Alguns professores fizeram parte, bem como um técnico e uma discente. Começaram a fazer as reuniões para discutir e introduzir os conceitos sobre mobilidade, traffic calming, sistema cicloviário etc. Para surpresa do meu amigo, um engenheiro do setor de infraestrutura veio até ele e falou que não deveríam fazer essas reuniões e discutir alternativas, afinal a reitoria já havia comprado o plano de mobilidade e necessitavam apenas o OK ao “plano”. Conclusão, já que haviam decidido tudo e somente precisavam de um mané para validar, nunca mais meu amigo apareceu na tal comissão, ele nem sabe como terminou. Sabe que implantaram exatamente o que compraram. E que planinho maltrapilho, é só visitar a instituição.

Mudou a reitoria. Ele me contou que foi tentar interferir na construção das calçadas e da circulação, disse que falou com o arquiteto, com o reitor, com o vice.......

 As calçadas foram um episódio trágico, se não fosse cômico. Meu amigo disse que foi até a reitoria, lá pediram para que ele falasse com o arquiteto. Ele foi, encontrou-se com o arquiteto e perguntou qual teria sido o parâmetro utilizado para planejar estas calçadas...




Segundo meu amigo, a resposta do arquiteto foi: planejei de acordo com o manual, duas pessoas lado a lado, largura recomendada, ponto. No mesmo momento da resposta, meu amigo pediu que o arquiteto olhasse para a rua, nesse momento vinham uns 4 ou 5 alunos caminhando pelo meio da rua, ele argumentou:

 _Olha! Aluno anda em bando, as calçadas aqui deveriam ter no mínimo 4 metros, as pessoas gostam de caminhar lado a lado. Quando as aulas acabam todos saem juntos, as calçadas deveriam comportar essa tsunami de alunos.


 O “ arquiteto” olhou meu amigo como se ele fosse mais um daqueles professores loucos, insanos. Como assim calçadas de 4 metros (no mínimo)? Aproveitem e reparem na foto, ela é pós construção da calçada. Onde vocês acham que a calçada esta? Depois dos carros, lógico. Primeiro acomodar os carros, depois os alunos, certo?

Meu amigo me disse que ao fazerem as primeiras aulas do curso de eng. de transportes, ele pergunta aos alunos o que eles acham das calçadas da universidade, se são boas, ruins, adequadas, convenientes etc. As respostas invariavelmente são apáticas, afinal não poderia ser diferente. 

Após algumas aulas, alguns exemplos mostrados no exterior e em algumas raríssimas cidades brasileiras, após verem as boas práticas, o olhar dos discentes muda por completo. Todos os semestres o professor e os alunos saem da sala de aula e ficam ali na calçada, no laboratório ao ar livre, se divertindo em como não fazer, depois têem outras aulas práticas no centro da cidade, mas o que eles mais gostam mesmo, é do laboratório que a universidade gentilmente lhe deu (somente para as aulas de como não fazer). 

Meu amigo espera que um dia a universidade desmonte esse horror e refaça como deveriam ter feito.

Meu amigo reflete que a semente da mudança foi plantada, um dia frutificará, assim ele crê.