EPIFANIA DAS CANELAS
Há muitos anos não viajava de
bicicleta, não me lembro da última vez que arrumamos as coisas: cola, remendo,
espátulas, chave de boca número 15 e 14, alicate, um ovo cozido, um doce, um
sanduba. Quando será que foi minha última pedalada na estrada rumo ao cálice
sagrado? Cálice sagrado era tão somente a pedalada, o chegar ao destino era o
menos importante, não me lembro.
Estou fazendo uma força danada
para me lembrar da última pedalada, mas nada vêm a minha mente. Talvez tenha
sido a descida da serra do mar pela Br 277, Curitiba – Morretes, se foi essa,
Meu DEUS, lá se vão quase 30 anos. É, se não foi essa a última, o espaço
temporal deve estar certo, entre 25 e 30 anos sem me lançar na estrada com meus
companheiros.
25 – 30 anos, acho que esse foi o
tempo que brinquei de ser adulto, indo para o trabalho, voltando para casa,
pagando contas, dormindo, levantando, indo para o trabalho....
Não havia abandonado a bicicleta,
pedalei no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Curitiba, onde quer que tenha morado,
sempre pedalei. Nunca fiquei sem bicicleta, mesclava a moto, o carro, o ônibus,
metrô, trem e a bicicleta, sempre usei os meios de transporte que estivessem
disponíveis.
Faz uns 15 anos que tenho usado
preferencialmente a bicicleta nos meus deslocamentos diários pelas cidades, a
rapidez, o custo e a liberdade são, para mim, os fatores motores dessa escolha.
Ontem levantei-me as 4hs:24min,
tomei café, comi umas frutas, as 5:00 horas já estava no trevo esperando meus
amigos, o céu começando a mostras os primeiros raios de sol, a silueta de
alguns carros e motos e de alguns ciclistas podiam ser visto, estava tranqüilo, o whatsapp já havia me
informado que meus colegas já haviam recebido minha mensagem e, com certeza, já
estavam na estrada vindo em minha direção, fiquei esperando.
Logo vi o contorno de dois ciclistas
acenando do outro lado da rodovia, não dava para ver os rostos, somente os
contornos, mas não precisava dizer mais nada, haviam chegado e era hora de
começar uma pedalada entre duas cidades ligadas por uma rodovia.
Saudamo-nos e embarcamos numa
jornada com um misto de apreensão e expectativas que só os jovens sentem. Meu
colega não havia nunca pedalado tal distância, era a primeira vez em sua vida
que iria se aventurar numa viagem de bicicleta, quanto a mim, quase 30 anos me
separavam dessas aventuras.
A pedalada começou tímida num
ritmo, confesso eu, decepcionante, estávamos muito, muito lentos para quem iria
viajar em uma rodovia e que logo, logo iria temer o sol inclemente daquela
região. Logo o sol já foi surgindo 5hs:15min o dia já raiava, podíamos ver
nossos rostos, nossos sorrisos, no misto de ansiedade e expectativa comecei a
apertar o ritmo, devagar, quase que sem que se fizesse notar comecei pedalar um
pouco mais forte, comecei a comentar sobre o vácuo, da sua importância, de como
os carros de F1 fazem ultrapassagens, de como os ciclistas formam pelotões e
economizam energia para o sprint
final etc. Era uma introdução de como nos deveríamos nos comportar para termos
mais eficiência na viagem.
Meu amigo havia convidado seu
primo para nos acompanhar em nossa jornada. O garoto de uns 18 anos chegou
vestindo uma lycra, camiseta jersey, capacete e óculos de ciclismo, bicicleta
com pneus slick etc. estava na cara que o moleque iria colocar
o velinho para pedalar.
Ainda pedalávamos lado a lado quando
sugeri ao garoto puxar o pelotão para que seu prrimo sentisse pela primeira vez
o fator “vácuo”. Na primeira descidinha o moleque começou a esquentar suas
canelas e assim começou a brincadeira, roda colada com roda, vácuo fazendo sua
função, bicicletas voando baixo no asfalto que só nos esperava. A brincadeira
foi se desenrolando, ora era vácuo, ora era pedalada lado a lado, nada
rigoroso, nada combinado.
As 7hs:00min entrávamos em nosso
destino, a pedalada havia sido tão rápida que mal nos demos conta que já
havíamos chegado, comentávamos sobre o cansaço: ei, alguém viu o cansaço por
ai? Estávamos inteiros, descemos até a praia, pedalamos na areia dura, fomos
até um ponto emblemático da cidade e pegamos nosso troféu.
Hora de hidratar, como sempre
havia esquecido a caramanhola que havia colocado no congelador, os amigos
sempre prevenidos me deram água, paçoca, completei com uma maçã deliciosa,
fechamos o ciclo, agora era curtir a praia.
Minha esposa foi me pegar,
desmontei a bicicleta, coloquei-a no carro e voltamos. Como havia me hidratado
não somente com água, mas com umas cervejas, estava fora de combate e fiquei
feliz em vir de passageiro olhando as paisagens ao longo do caminho. Olhando
aquelas paisagens tive minha epifania. Percebi que naquela manhã não vira a
paisagem enquanto pedalava, não vira nada; nem a paisagem, nem o tempo, estava
somente pedalando, curtindo o caminho. Nada me preocupava, éramos eu, a
bicicleta, o caminho e meus companheiros.